segunda-feira, 4 de agosto de 2014

CHICOTE - a exploração e tortura sistemática dos animais ditos "de tração"


  • Reproduzo, abaixo, texto de Sonia T. Felipe, acerca da realidade diária sofrida pelos animais ditos "de tração" (cavalos, burrinhos e jumentos, sobretudo), a quem é negada sua própria individualidade e natureza, tratados que são como "máquinas" à disposição do homem. 
  • Mesmo máquinas teriam melhor tratamento, afinal necessitam e recebem manutenção apropriada, de forma a justificar o investimento financeiro anteriormente feito quando de sua aquisição. 
  • Não se trata de uma realidade que sequer exclusivamente aconteça nos remotos confins do interior, em lugares extremamente pobres, como você talvez imagine. Aqui mesmo em Paquetá, Rio de Janeiro, tal exploração hedionda é objeto de "diversão" para os visitantes. 
  • Nem o lançamento dos dejetos das cocheiras imundas destes pobres animais na Baía de Guanabara, às vésperas do "banho de merda" a que serão submetidos os atletas olímpicos em 2016, parece ser motivo suficiente para que as "autoridades" tomem vergonha na cara e acabem com esta tortura injustificável, uma vez que projetos de carrinhos elétricos __ ecológica e eticamente corretos __ já foram apresentados e são economicamente viáveis, além de assegurar ocupação para os hoje "charreteiros" da região. 
  • Qual será o prazer em insistir em práticas medievais e inaceitáveis? 
  • Qual será o prazer em torturar? 
  • Que reais motivos levariam a administração pública a manter estes antros de tortura e foco potencial de doenças e desequilíbrio ambiental? Há muito já passamos de situações argumentáveis. 
  • Hoje temos apenas o DEBOCHE descarado como resposta dos encarregados de gerir esta e tantas outras situações éticas e de interesse da população.                                                                                                                                                                       Norah

  • CHICOTE 
  • Sônia T. Felipe 

  • É pelo golpe do chicote que o forçam a mover-se. Desde jovem. Escravizado. Passa o dia puxando a carroça carregada. Os cascos firmam-se contra o asfalto, resvalam nos paralelepípedos plantados de forma irregular, as lajotas deslocadas de seu berço, as poças d’água, as pedras que o fazem torcer a pata. E ele evoluiu para galopar nos prados...                                                                                                                                       O peso é descomunal. O da carroça, feita de madeira maciça, e o das rodas, feitas de ferro. Mas isso ainda não é tudo, não basta para os humanos que o mantêm na condição de refém, de escravo. Há mais peso ali, acrescentado ao da carroça. Ora é carga inerte, tijolo, telha, entulho, lixo. Ora é carga viva. E não é pouca.                                                   Cinco, seis, oito humanos se acomodam nos assentos, tagarelas, aproveitando ao máximo o conforto da “carruagem”. Sobem nela e sentam-se ali, como se estivessem em sua sala de visitas, sentados em seus sofás. Sentam-se, felizes, porque ali a sala os leva a passear, como num passe de mágica, e a tela não é de dois palmos, é amplíssima e eles são levados por dentro dela a passear.                                                                   
  • Não há ruído de motor de tração. A tração é silenciosa. Se há algum ruído, ele vem do atrito das patas do cavalo sobre o asfalto, as lajotas, os paralelepípedos, as pedras, as poças e buracos da rua. E os cavalos puxam esse peso todo, que equivale ao, ou excede em muito, seu próprio peso. E eles o puxam o dia todo.                                                         O sol está forte. O calor desidrata. Mas ninguém está passeando ali para se preocupar com a sede ou com o cansaço do cavalo. Todo mundo se aboleta na carroça para curtir o passeio, as férias, para divertir-se. E o fazem à custa do tormento do cavalo. Atado em aparatos de ferro, a começar pelo que lhe atravessam sob a língua, órgão usado como sensor dos desejos do boleeiro. Puxando o “freio” posto sob a língua do animal, o machucam, o fazem sentir dor. Então, pela dor da puxada do freio, o animal para.       Uma dor ainda está ali, quando a outra lhe é provocada. É preciso que ele saiba que agora precisa retomar a marcha pesada, puxando a carga humana. E, atormentado pela dor dos músculos exauridos, pela desidratação, pela fome, pelas ligas de ferro e couro que o atam à carroça, o cavalo recebe um guascaço sobre o lombo, dado com um chicote feito de tiras de couro, trançadas, ou não.                                                                            
  • E o golpe desse chicote sobre seu couro o faz arrancar num impulso. Não porque tenha entendido o desejo do carroceiro, mas porque a dor é imensa e não há como ficar parado ao sofrer o golpe. Obviamente, por estar amarrado fortemente à carroça carregada de humanos, ao tentar fugir, nesse impulso que o leva a buscar não sofrer outra vez o mesmo golpe de chicote, o cavalo puxa a carroça para frente. E segue puxando-a, pois se esmorecer levará outro golpe. Os carroceiros fazem isso a ele todos os dias, o dia todo, por toda sua vida, com o apoio da lei e o gozo dos usuários. 
  •  E, ao final do dia, ao ser liberado das amarras para passar a noite, sofre novos castigos. Ou é a comida que não vem, ou vem pouca. Os remédios para aliviar a dor dos machucados, dos golpes de chicote e das feridas das correias que amarram seu corpo ao artefato pesado que foi forçado a puxar, a dor das atrofias articulares, dos tendões lesados, dos nervos em frangalhos, dos músculos enrijecidos, o alívio dessas dores, nunca vem, remédios para elas, não, também. 
  • E esse cavalo que levou gente bem vestida e perfumada a passear pela cidade que o escraviza tem que dormir sem conforto algum, sobre seus excrementos e urina não retirados dali enquanto ele seguiu mais uma jornada de sofrimento. 
  • No silêncio da noite fria, ventosa, úmida, quente, cheia de mosquitos, moscas, excrementos, fome, sede, cansaço, reverbera o relincho que esse animal já não consegue dar. Quebraram sua vontade. Quebraram sua altivez. 
  • Na manhã seguinte, ele voltará a ser amarrado à carroça e a puxará para levar turistas em festas, em férias, em folga, em liberdade, mas seu pescoço já não consegue mais erguer-se, e não porque ele goste de olhar para o chão, mas porque algo está errado com suas articulações, seus nervos e tendões. Mas ninguém o vê. Ninguém presta atenção nele, ao subir para o assento da carroça. É tradição. 
  • Ninguém vê a dor que causa ao cavalo que o leva a deslizar sobre paralelepípedos, lajotas, buracos, pedras, poças d’água, asfalto em brasa. Ninguém vê nada. E ninguém se admira que o animal já não relinche. Relinchar é falar. Falar, para quem? Doer e resignar é o que nossa liberdade de escravizar cavalos deixa para eles. Resignar, em vez de relinchar. Mas isso vai acabar! Já não há perdão para tanta barbárie em nome da tradição e do turismo!



(postagem originalmente feita por Sonia T. Felipe como status no Facebook)