Texto da palestra de 2007 de Sônia T. Felipe, aqui reproduzido, primeiro postado em Pensata Animal
Mais um texto de Sonia T. Felipe reproduzido em nosso blog para leitura e consulta de todos, bem como compartilhamento.
Numa crítica contundente à então recém aprovada Lei Arouca, Sonia rebate o argumento dos adversários dos direitos dos animais de que a visão abolicionsita não estaria fundamentada em "argumentos científicos", com argumentações éticas incontornáveis.
Destaque-se, por exemplo: "Imaginemos que, para abolir a escravidão humana, houvesse sido exigida uma "prova científica" de que os "negros" mereciam igual consideração e direitos."
RESUMO: Neste artigo, respondo à acusação da cientista que afirmou não estar fundada em argumentos "científicos" a proposta abolicionista de erradicação de todos os experimentos feitos em animais vivos, e apresento os argumentos éticos para esclarecer por que a pesquisa em animais vivos não pode ser justificada eticamente, a não ser seguindo o modelo antropocêntrico da moralidade, justamente o que nos leva a destruir a vida alheia em nome de uma promessa da boa vida para humanos.
Ciência
Por conta da aprovação da Lei Arouca, na semana passada, representantes da comunidade "científica" acusaram os abolicionistas de não serem "científicos" em sua defesa do fim do uso de animais para testes da indústria química, bélica, farmacêutica, de cosméticos e alimentos (todas vinculadas aos interesses da primeira).
A defesa da erradicação das pesquisas em animais vivos de quaisquer espécies, para os vivisseccionistas, só teria valor se fosse uma defesa "científica". Em não se tratando de uma tese "científica", a proposta abolicionista não teria valor algum. Ao fazer tal afirmação, a cientista omite de seus leitores ou ouvintes fatos marcantes da história de sua área de atividade, a ciência.
Com a pretensão de buscar o conhecimento de forma objetiva, a ciência dedicou-se nas últimas décadas à investigação de drogas para "cura" das doenças humanas. Por serem "cientistas", os vivissectores excluíram de sua investigação todos os métodos que não usam animais. Por terem a certeza de que o método vivisseccionista é o "único" método que leva a ciência à descoberta da cura das doenças humanas, esses mesmos cientistas passaram as últimas sete décadas a interrogar as entranhas dos organismos de animais de outras espécies, pondo-lhes "questões objetivas" (leia-se, "científicas") que, assim acham os cientistas, os organismos animais, que possuem anatomia, fisiologia, metabolismo, e bagagem genética diversa da humana, têm obrigação de responder para livrar os humanos de doenças que eles próprios não investigam, mas dizem à comunidade, ansiosa pelos resultados de suas descobertas, querer curar.
Pois bem. Esta ciência que agora acusa os abolicionistas de não serem "científicos" em sua luta pela libertação dos animais, é tão "científica" em seus estudos usando ratos, camundongos, cães, gatos, primatas, que passou mais de 70 anos produzindo "verdades científicas" descartáveis, seguindo ora os interesses da indústria tabagista, ora os interesses das seguradoras privadas de saúde. A ciência produzida com cobaias vivas de outras espécies é tão "rigorosa" e "objetiva", em seus métodos de investigação, que por mais de meio século levou os leitores dos papers científicos a lerem, ora um artigo que "provava" cientificamente que o uso de tabaco produz câncer, ora que o uso de tabaco não produz câncer. Uma objetividade sem par! (Ver, Allan M. Brandt, The Cigarette Century: The Rise, Fall, and Deadly Persistence of the Product that Defined America, New York: Basic Books, 2007, 600 p.)
A objetividade metodológica da vivissecção é tão irreprochável que admite resultados "científicos" contraditórios, não apenas no exemplo da pesquisa financiada pela indústria tabagista e pelas companhias de seguro de saúde. Enfim, segundo a cientista que acusa os abolicionistas de não serem científicos em sua defesa dos animais, quando a ciência usa um animal vivo para testar qualquer produto químico, ela chega à conclusão objetiva que procura. É verdade. O cientista monta seu protocolo de pesquisa tão "objetivamente" que o resultado de sua investigação já pode ser publicado antes do experimento ser levado a efeito. A ciência é tão objetiva que "conduz" a investigação de modo a que ela resulte exatamente no que o protocolo de pesquisa promete trazer à luz. Portanto, se a pesquisa é paga (direta ou indiretamente) pela indústria tabagista, o protocolo do cientista afirma que o cigarro não produz câncer. Todavia, se o projeto recebeu financiamento da indústria de seguro-saúde privado, o protocolo de pesquisa formula a hipótese a ser comprovada de que o fumo produz câncer. Bingo! Para os dois protocolos. E, pobres dos cientistas que devem produzir a confirmação "objetiva" de suas hipóteses contraditórias! Se não têm animais vivos para levar a efeito seu protocolo de pesquisa, os resultados a que chegam "não podem" ser classificados de científicos! Podemos concluir então que quem garante ao cientista vivisseccionista a objetividade dos resultados que ele almeja são os ratos e camundongos que ele extermina em seus experimentos. Raciocínio para encaminhar sua pesquisa usando conhecimentos da física, da química, e de outras áreas que formam juntas o cabedal do conhecimento necessário para explicar a doença de um humano, isso eles não podem aprender a fazer. A questão é que esses mesmos ratos e camundongos que dão garantia de objetividade à pesquisa vivisseccionista são usados tanto para "provar cientificamente" que o fumo dá câncer, quanto para "provar cientificamente" que o fumo não dá câncer. O que é isto, então, fazer ciência?
Para a cientista que acusa os abolicionistas de não serem "científicos" ao defenderem o fim do uso de animais vivos em experimentos da indústria química em quaisquer de suas ramificações, a ciência é um conhecimento tão refinado, tão sofisticado, tão mais elevado do que a ética, não? Pois é: o cientista só põe questões a serem respondidas pelas entranhas de ratos e camundongos, por serem essas o "único" recurso do qual dispõe a inteligência humana para a obtenção do conhecimento que se deseja sobre a etiologia e terapêutica das doenças. O cidadão que não "sabe" como fazer pesquisa científica dispõe do seu raciocínio, da capacidade moral de antecipar historicamente a derrocada dos modelos "científicos" mais arraigados, e da memória de todos os erros que se cometeu ao longo da história quando se quis fundamentar decisões de ordem moral em "conhecimentos científicos", descartáveis. A noção ética de malefício e benefício não é descartável, não tem idade. Pode-se dar voltas e voltas, mas sempre se acaba dando meia-volta e reconhecendo que não dá para escapar dela.
É preciso lembrar a esta senhora cientista que se hoje ela ocupa o lugar que ocupa na comunidade científica, isso se deveu à luta de filósofos (John Stuart Mill na Inglaterra, por exemplo) que, de modo "não científico" defenderam a abolição do uso e abuso praticado contra os interesses das mulheres num tempo em que elas eram consideradas incapazes de raciocínio, de inteligência, de ciência, de política, de administração dos próprios negócios, de responder civilmente por seus atos... isso faz menos de dois séculos. No Brasil as mulheres só puderam votar na década de 30 do século XX, portanto somente há 80 anos. Também a erradicação da escravização dos africanos se deveu a um argumento absolutamente "não-científico", o da igual consideração da dor e sofrimento para qualquer ser dotado de sensibilidade e consciência.
Imaginemos que, para abolir a escravidão humana, houvesse sido exigida uma "prova científica" de que os "negros" mereciam igual consideração e direitos. À época, os cientistas que estudavam a "natureza" dos negros chegavam a escrever coisas tais quais esta, em suas enciclopédias "científicas" de psiquiatria: os negros sofrem de uma patologia que os leva à síndrome de fuga. Não podem ser deixados sem vigilância ou correntes, pois têm genes que os levam a fugir impulsivamente do lugar onde se encontram! Mas a ciência não produz disparates apenas em relação aos negros, não. Tem mais uma: as mulheres não podem dedicar-se aos estudos e seguir uma vida de "cientistas", ou de "filósofas", porque sua circulação sangüínea se altera, tornando-as estéreis! Isso era cientificamente comprovado, por seus pares "científicos", colega! (Ver, Tom Regan, Defending Animal Rights, Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2001).
Assim, a levar-se em consideração que uma luta ética de abolição de todas as práticas cruéis e tormentosas de escravização de seres capazes de sentir dor e de sofrer tem que ser precedida por uma "comprovação científica" dos argumentos, a colega cientista estaria condenada ainda a parir bebês e ter suas contas pagas pelo marido. E, caso fosse rica, teria amas de leite afrodescendentes para cuidar de nutrir seu bebê! Tudo em nome de conclusões científicas objetivas!
Mas, o que traduz a "objetividade" da vivissecção? É o fato de ela pôr uma questão às entranhas de ratos e camundongos, e tirar daí sua resposta mais sábia? Mas, se são "igualmente sabedores", os cientistas que concluem, ao investigar entranhas de ratos, camundongos, cães, gatos, símios e aves, que cigarro não dá câncer, e os que concluem que dá, como pode a colega cientista acusar os defensores dos animais de não serem "científicos" em seus argumentos? Presumo que a colega esteja a entender por "científico" um método que traz resultados objetivos seguros e irretocáveis, que possam ser confiáveis para que os humanos tomem outras decisões relevantes baseando-se neles, por exemplo, erradicar toda propaganda de cigarro na TV, ou parar de fumar. É para isso que a sociedade paga salários aos cientistas, para que produzam conhecimentos que permitam às pessoas e aos governos tomarem medidas de precaução para não serem afetados por doenças evitáveis. Ou não é bem essa a história a ser desvelada? (Ver, Sônia T. Felipe, Vivissecção, um negócio indispensável aos "interesses" da ciência?, Pensata Animal, Tribuna, 2007).2
Bem, se a ciência deve produzir um conhecimento objetivo e digno de ser usado pelas pessoas para orientar suas próprias decisões em relação à sua própria saúde e à saúde de sua família, como é que emprega métodos tão "cientificamente objetivos" que levam a resultados disparatados, tanto quanto o são os testes feitos em animais para "provar" que cigarro não produz câncer, e, que produz? E os filósofos defensores dos animais é que não são "científicos"? Talvez eles tenham horror à contradição, ao embotamento da inteligência humana e até mesmo a falácias na produção do conhecimento.
A cientista ainda acusa os abolicionistas de estarem propondo que os testes ora feitos em animais vivos de outras espécies sejam feitos em humanos vivos! Só uma pessoa desinformada dos argumentos abolicionistas pode afirmar tal coisa. Exatamente por considerarem os métodos atuais vivisseccionistas indignos da moralidade humana, até mesmo da moralidade de um "positivista", é que os abolicionistas lutam pela erradicação desses métodos na busca do conhecimento necessário para a preservação da saúde humana e a prevenção de males evitáveis. Bem, esse projeto não passa pelo uso de animais vivos, nem não-humanos, nem humanos.
O que os abolicionistas propõem é que sejam substituídos os métodos tradicionais vivisseccionistas por métodos de investigação não vivisseccionistas. Por isso não defendemos "alternativas", exatamente para não deixar margem para a "escolha subjetiva" do método. Os novos métodos devem substituir o usado até hoje.
É claro que para fazer ciência "limpa" (sem dor, sofrimento e sangramento alheios) os métodos apropriados ainda precisam ser inventados e aprimorados. Alguns, por exemplo, os estudos clínicos e epidemiológicos, já existem, mas não recebem financiamentos em larga escala, pelo menos não em escala tão larga quanto recebem os vivisseccionistas. Outros métodos, por exemplo, simulações complexas em computador, já são empregues no estudo de algumas interações bioquímico-físicas, mas precisam ser aprimorados para estudo de outras, o que já está sendo feito no caso de biochips (o biochip da síndrome de Golgi, por exemplo, que permite estudos do diabetes e coagulação, inventado por um jovem numa universidade norte-americana). Isso é pouco? Obviamente! Se todo dinheiro do planeta está escoando pelo ralo dos laboratórios vivisseccionistas, como se pode esperar que sem dinheiro os jovens cientistas possam construir modelos substitutivos às entranhas de ratos e camundongos? Mas é só uma questão de financiamento. Em duas décadas as simulações por computador, os biochips, as pesquisas com células-tronco-próprias, os modelos matemáticos, a física quântica, e os estudos transdisciplinares aposentarão a massa de cientistas que hoje insiste em manter ao mais alto custo para os animais, a saúde humana e a eticidade científica um único modelo de investigação, o que emprega seres vivos em testes de todo tipo para fabricação de drogas de toda ordem que combatem sintomas mas não produzem a saúde do organismo humano.
Ainda uma palavra sobre experimentos macabros levados a efeito em animais vivos, humanos e não-humanos. É tempo de cultivar a inteligência da juventude, e de livrar as universidades de todas as práticas que recendem a crueldade contra seres sencientes, tenham esses o formato que tiverem, sejam eles capazes ou não de raciocinar em termos lógicos típicos da inteligência humana. É uma incoerência argumentar que a incapacidade lógica dos animais é a razão pela qual os usamos em experimentos tormentosos. Mesmo a comunidade científica tem membros incapazes de agirem de modo lógico, ainda que saibam seguir um raciocínio instrumental. Nem por isso se defende que sejam usados nesses experimentos cruéis. O que importa é a capacidade de sofrer, não a de raciocinar!
Além do mais, é preciso não mentir quando se fala de vivissecção. Os cientistas afirmam na mídia que a lei aprovada para regulamentar a vivissecção os obriga a aplicarem analgesia ou anestesia nos animais. Isso não é verdade para os experimentos mais dolorosos, justamente os inflamatórios, neurológicos e psicológicos. Se o animal for analgesiado o resultado do experimento não conduzirá ao fim almejado. Se é preciso produzir a inflamação para estudo de anti-inflamatório, como se pode afirmar para o público que o animal receberá analgesia, se nela há substâncias anti-inflamatórias? Afirmar tais coisas é mais do que errar por falácias!
Quanto à acusação de que os defensores dos animais não adotam argumentos científicos para embasar sua argumentação, gostaria de dizer que isso não é uma ofensa, é o reconhecimento lúcido de que a perspectiva da defesa dos animais não sofre os revezes das "grandes verdades científicas", que tanto podem ser afirmadas quanto negadas, dependendo do bicho que foi empregue na investigação, e da fonte que financiou a pesquisa. Sempre foi verdadeiro que maltratar animais é ato de imoralidade humana. Ao longo da história tal argumento ético foi sufocado, mas jamais deposto. Continua a ser verdade que maltratar animais, seja para pseudo-benefício humano, ou simplesmente para obter divertimento é algo que não pode ser justificado eticamente. O argumento abolicionista não é "científico", é ético. Explico a seguir o que quero dizer com isso.1
O argumento conservador em favor da vivissecção
O filósofo norte-americano Carl Cohen, representando a comunidade científica responsável pela investigação em animais vivos, reconhece que o uso de animais para alimentação, lazer, testes cosméticos e moda deve ser questionado, mas não o uso de animais vivos em experimentos biomédicos. Cohen lista uma série de descobertas feitas com experimentos em modelo animal vivo, que ajudaram a minimizar dores e doenças humanas. Esta é a linha de argumentação em defesa da continuidade dos experimentos em animais vivos: os benefícios que tais experimentos representam para o bem-estar humano.
Cohen indica estes benefícios, e, em nome deles, ignora absolutamente o malefício que tais experimentos produzem ao bem-estar e à vida de animais das mais diferentes espécies, usados vivos, sem analgesia e anestesia nos experimentos mais macabros, que vão desde congelamento a queimaduras, isolamento físico e psíquico, a, tormentos causados por drogas ou produtos químicos que lhes são injetados, inalados, ingeridos, e assim por diante (Ver o documentário Earthlings, e Não Matarás!, Instituto Nina Rosa, São Paulo, 2006).
A defesa do uso de animais vivos em experimentos dolorosos ou atormentadores elaborada por Cohen não se constitui sobre um argumento ético. Ela tem natureza estritamente econômica, o que não quer dizer somente vantagens monetárias para quem faz uso de animal vivo para desenvolver a ciência.
Exigências formais e substancial de um princípio genuinamente ético:
1. Universalizabilidade (qualquer sujeito capaz de raciocínio esclarecido deve poder reconhecer que tal princípio é válido, obrigando-se com esse reconhecimento a obedecê-lo);
2. Generalidade (o princípio deve servir para orientar decisões em casos que não são da mesma natureza);
3. Imparcialidade (o princípio deve ser seguido pelo sujeito moral agente em todos os casos, ainda que seus interesses possam ser prejudicados em certos casos);
e, uma exigência substancial:
4. Orientar decisões e ações humanas com vistas a beneficiar os afetados por elas.
Tomemos o caso dos experimentos em animais vivos para verificar de que modo tal prática poderia ser considerada ética, considerando-se as exigências formais e a exigência substancial acima apontadas.
O princípio ético substancial e fundamental para julgar as ações humanas leva em conta, exatamente, que tais ações podem ser responsáveis pelo benefício ou pelo malefício daqueles que serão afetados por elas. Não importa, neste caso, a natureza biológica daqueles que serão afetados pela atividade que está sendo julgada. O que importa, da perspectiva ética, é se tal atividade beneficia ou prejudica os seres afetados por ela. No caso de experimentos em animais, vimos no primeiro parágrafo que a justificativa de tais procedimentos sempre é o presumido benefício que a atividade de investigação em modelo animal vivo traz para os seres humanos.
O argumento tradicional que defende tal prática investigadora não leva em consideração todos os seres afetados por esta metodologia, apenas os interesses presumidos dos seres humanos, em nome dos quais se justifica a prática dolorosa e atormentadora levada a efeito nesses animais. Pode-se concluir, então, que o uso de animais vivos em experimentos que lhes causam dor, sofrimento e morte, em nome do benefício que tais experimentos trazem para a saúde humana fere a quarta exigência que a filosofia faz a qualquer princípio moral que tenha a pretensão de validade: a de que deve orientar as decisões humanas para o benefício daqueles que são afetados por ela. No caso dos animais usados em experimentos de laboratório esta exigência é absolutamente ignorada, pois não se tem conhecimento de um experimento doloroso e letal que sirva para atender ou beneficiar o animal usado vivo nele. A ciência está sedimentada sobre uma perspectiva ética antropocêntrico-hierárquica, razão pela qual os interesses mais genuínos dos animais não contam, ainda que confrontados com os mais triviais interesses humanos, por exemplo, adquirir um batom com novo aroma ou coloração. Isso basta para cegar coelhos nos testes dos elementos que entrarão na nova coloração e aroma.
Mas, seria tal procedimento ético, pelo menos no que diz respeito à terceira exigência formal de um princípio ético, qual seja, a da imparcialidade na tomada de decisão quando esta pode afetar interesses moralmente relevantes de outros seres? Também neste caso, o uso de animais vivos em experimentos não pode ser justificável do ponto de vista ético, pois viola o princípio da imparcialidade.
Quando se trata de seres sencientes, isto é, capazes de sofrer dor, tormento psíquico e qualquer outro desconforto, mal-estar, prejuízo ou morte por conta de ações empreendidas por sujeitos morais agentes, julgamos antiéticas tais ações pelo fato de que elas só deveriam ser empreendidas com pleno consentimento dos afetados por elas. Por isso, para fazer experimentos em animais-humanos vivos é preciso que eles concordem com o experimento e, para que concordem com ele, é preciso que recebam esclarecimento sobre os riscos inerentes a ele.
No caso de animais da espécie Homo sapiens, não se pode realizar qualquer experimento naqueles que não podem dar consentimento esclarecido: bebês, crianças, adolescentes, dementes, comatosos, pobres, adictos, marginalizados de qualquer natureza.
O princípio da imparcialidade, terceira exigência formal de um princípio ético, não admite o uso de seres sencientes humanos em experimentos que lhes possam causam dor, sofrimento ou privação que resultem em dano e morte. Se um experimento tem que ser realizado, o pesquisador tem que encontrar um paciente que atenda à exigência do consentimento esclarecido, isto quer dizer, que seja capaz de pensar com clareza e tenha sua vontade livre de toda e qualquer forma de dominação, que pode ser material ou mental.
Sem liberdade de escolha não pode haver pesquisa de seja lá qual for o problema que afeta humanos. Quando se faz pesquisa em animal vivo esta exigência é ignorada absolutamente. É claro, poderíamos replicar: "animais não podem manifestar-se nem dar consentimento, nem ser esclarecidos sobre os riscos inerentes a este ou aquele experimento!". Justamente. Por não serem capazes de nada disso, estão no mesmo patamar dos bebês humanos, das crianças e adolescentes, dos senis, dos dementes, dos miseráveis, dos adictos que não podem raciocinar com clareza sobre os assuntos que lhes dizem respeito. Sua vontade não é livre, pois sua condição os torna dependentes das decisões tomadas por seus cuidadores. Ainda aqui poder-se-ia achar a saída para justificar o uso deles, exatamente por serem dependentes das decisões que outros têm de tomar em seu nome. Mas, neste ponto, a quarta exigência que constitui a natureza de um princípio ético é o limite imposto aos que cuidam desses humanos incapazes: suas decisões devem estar orientadas para proteger e preservar o bem-estar próprio daquele que se encontra na condição de vulnerabilidade.
Onde está a imparcialidade dos sujeitos morais agentes que usam animais vivos em experimentos que destroem o bem-estar próprio do animal e acabam com sua vida? No caso humano, a imparcialidade ordena que não se faça a eles o que não se admitiria que fizessem contra nós. Mas, assim que passamos a barreira da espécie biológica e nos encontramos diante de um animal não-humano, especialmente quando sua configuração não se assemelha à da espécie Homo sapiens, abandonamos imediatamente a exigência de imparcialidade e o dever que ela impõe, de proteger e preservar o bem-estar dos seres em situação de vulnerabilidade aos interesses humanos.
A segunda exigência formal de um princípio ético é a de que seja capaz de iluminar juízos e decisões morais em casos distintos. Tomemos, pois, o princípio moral mais conhecido, o da não-maleficência. Este é um princípio muito antigo, conhecido nos textos judaicos, no humanismo grego, e nas concepções éticas budista e jainista. Baseada no princípio da não-maleficência, qualquer decisão, ação ou atividade de um sujeito moral agente deve ser guiada pela finalidade de não causar mal a qualquer ser senciente, e promover seu bem-estar, abstendo-se de ações que possam privar outros seres das condições de estar bem em vida a seu próprio modo, isto quer dizer, de acordo com o bem-estar de sua espécie de vida.
Quando animais vivos sencientes são usados em experimentos científicos aquela exigência é ignorada. Poderíamos aqui pensar que a ética bem-estarista, a que defende condições de maior conforto para os animais usados em laboratório seria a saída para tornar éticas essas pesquisas. Isto é uma ilusão. O princípio da não-maleficência e sua contraface, o da beneficência, não ordenam que se dê aos animais sencientes o tipo de conforto necessário e suficiente para que o experimento seja bem sucedido. Ele ordena que em quaisquer casos, o bem-estar próprio daquele indivíduo seja protegido e preservado. Tal exigência torna anti-ético qualquer experimento em animais vivos, pois o bem-estar próprio do animal usado nesses experimentos já foi danificado pelo fato mesmo de o animal ser privado das condições ambientais nas quais seu psiquismo e sua fisiologia poderiam encontrar o equilíbrio homeostático típico de sua espécie. Assim, também em relação à segunda exigência formal de um princípio ético, experimentos em animais vivos sencientes não podem ser considerados éticos.
A primeira exigência, a da universalidade do princípio, obriga todos os sujeitos morais agentes, quer dizer, todos os seres humanos capazes de raciocinarem sobre os desdobramentos de suas ações e os malefícios que elas podem representar para os interesses de outros seres sencientes que forem afetados por elas, a tomarem decisões e empreenderem ações apenas nos limites do princípio ético, se quiserem que suas ações sejam aprovadas da perspectiva moral.
Via de regra, no caso de experimentos científicos em animais vivos, o cientista não está minimamente interessado em saber se o que ele faz tem ou não aprovação ética, bastando que seu protocolo de pesquisa tenha aprovação de seus pares e dos órgãos que o financiam. De ética, este conjunto de crenças não tem nada. São crenças fomentadas pelo cientista para assegurar financiamento de seus projetos. Se o protocolo de pesquisa for aprovado, isto quer dizer, se ele receber financiamento, basta. Considerações éticas tornam-se dispensáveis. Menos nos casos em que procedimentos experimentais possam levantar suspeitas relativamente ao prejuízo, para o experimento, de submeter os animais vivos sencientes a procedimentos que acabem por atrapalhar o resultado da pesquisa.
Pode-se ver que o princípio da universalizabilidade, que deveria levar os cientistas a realizarem investigações dentro dos limites do princípio da não-maleficência, é completamente ignorado no caso de experimentos em animais vivos. A única preocupação do cientista é a de não perder o financiamento de seu projeto. Os órgãos financiadores não têm princípios éticos para decidir quais pesquisas são maleficentes para os animais submetidos a elas. O bem-estarismo não defende os animais frente à liberdade do cientista de usá-los em experimentos dolorosos e letais.
Animais, humanos e não-humanos, são seres capazes de ter um bem-próprio, isto é, específico, e, ao mesmo tempo, seres cuja manutenção deste bem se dá em condições ambientais e emocionais frágeis. Qualquer interferência que represente limitação a este bem, necessariamente é maléfica ao indivíduo que a sofre.
Nos termos nos quais se faz investigação, hoje, não há possibilidade de reconhecer vestígios de ética na perspectiva do respeito pelos interesses dos animais. Poderíamos nos agarrar à hipótese de uma ética antropocêntrica, quer dizer, uma ética indiferente à dor e ao sofrimento animal, realmente voltada apenas para alcançar o benefício humano. Se conseguíssemos justificar a pesquisa sob esta perspectiva, poderíamos então reconhecer que se poderia aprovar tudo o que se pratica hoje contra os animais. A questão, porém, é que o tal do benefício humano não é alcançado. Há três décadas atrás, era raro conhecer alguém que sofresse de câncer, ou depressão profunda (refiro-me à cidade onde moro, Florianópolis). Hoje, passados trinta anos nos quais a indústria química produziu drogas para tratar de quaisquer sintomas humanos, o câncer, os AVC's e a depressão estão espalhados na comunidade da UFSC, que agrega mais de trinta mil pessoas. Os trilhões de animais que foram mortos em pesquisas contra o câncer não levaram a ciência a descobrir a cura do câncer. Os cientistas continuam a crer que outros tantos trilhões de vidas animais serão necessárias até que eles cheguem às descobertas que prometem fazer. Eles continuam a procurar as chaves perdidas na madrugada debaixo do poste iluminado, mesmo já sabendo que ela foi perdida lá atrás, na esquina escura (para poste iluminado leia-se: financiamentos).
NOTAS: 1 Palestra proferida pela autora na IX Semana de Biologia da UFSC. Auditório do Forum, CCJ/UFSC, 23/10/07, a convite dos estudantes que organizaram a mesa-redonda: Ética e Experimentação Animal, da qual participaram os pesquisadores, Dra. Paula Brügger (UFSC), o presidente da CEUA, Dr. Tonussi (UFSC), o presidente do COBEA, Dr. Freyblatt (UNIVALI).
2. Artigo também já publicado anteriormente neste blog, em fevereiro de 2012.
Sobre a autora:
Sônia T. Felipe
- Doutora em Teoria Política e Filosofia Moral, pela Universidade de Konstanz, Alemanha (1991). Co-fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC, 1993). Autora dos livros, "Ética e Experimentação Animal - fundamentos abolicionistas" (Edufsc, 2006); "Por uma questão de princípios" (Boiteux, 2003). Co-autora de "A violência das mortes por decreto" (Edufsc, 1998), "O corpo violentado" (Edufsc, 1998),"Justiça como Eqüidade" (Insular, 1998, esgotado). Colaboradora nas coletâneas, "Instrumento Animal" (Canal 6, 2007), "Éticas e políticas ambientais" (Lisboa, 2004), "O utilitarismo em foco" (Edufsc, 2007), "Filosofia e Direitos Humanos" (Editora UFC, 2006), "Tendências da ética contemporânea" (Vozes, 2000). Autora de dezenas de artigos editados nos sítios: http://www.svb.org.br/; http://www.pensataanimal.net/; e na Revista Ethic@ (http://www.cfh.ufsc.br/ethic@/). Coordena o Laboratório de Ética Prática, do Departamento de Filosofia da UFSC, é professora e pesquisadora do Programa de graduação Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, da UFSC. Membro Permanente do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e do Bioethics Institute da Fundação Luso-americana para o Desenvolvimento, Lisboa. Coordena o Projeto de pesquisa: Feminismo ecoanimalista: contribuições para a superação da violência e discriminação especistas, revisando a literatura sobre defesa de animais e ecossistemas produzida por mulheres (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, UFSC, 2009-2011).
Nenhum comentário:
Postar um comentário